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A nós os dois, filho

escrito por: Sofia Ramos

12/12/2021

No dia 3 de agosto deste ano, dei entrada no hospital público da minha área de residência na margem sul, para iniciar a indução que estava marcada. A gravidez correu muito bem, fui acompanhada no público e no privado o que me deu alguma segurança de que tudo o que me indicaram seria o melhor para mim e para o meu bebé, apesar de ser um bebé grande para um parto normal e a indução só ser possível às 41 semanas, segundo o protocolo. Dirigi-me ao hospital nessa manhã, estava marcado para as 9 horas, ia ansiosa e nervosa pelo que me esperava. O meu marido fez o teste do covid, deu negativo mas não podia estar comigo, segundo as normas da direção geral de saúde, então ele aguardou no parque de estacionamento pago de um hospital público.

Entrei na porta que dizia bloco de partos, disseram para aguardar, estavam lá outras grávidas também com indução marcada. Uma enfermeira chamou o meu nome de um gabinete, explicou-me assim com muita pressa algumas coisas, fez questões, ficou com as minhas ecografias e últimas análises e deu-me duas batas para me vestir uma virada para a frente e outra para trás e aguardar por outra enfermeira.

Assim fiz, aguardei e a enfermeira seguinte deu-me a chave de um cacifo para colocar a minha mala e levou-me até à box 7 onde iria ficar a fazer a indução. Fez-me os procedimentos que achei normais e para aguardar pela equipa de médicos. Assim aguardei, sem saber o que me esperava, ia falando com o meu marido pelo telemóvel.

Entretanto entrou a equipa de médicos, na qual a médica me disse para desligar o telemóvel num tom arrogante, estiveram a ver as últimas análises e ecografia e o questionário que tinha respondido à enfermeira quando entrei. Dirigiu-se a mim, sem dizer o que ia fazer, fez-me o tal “toque maldoso”, como chamam, com uma brutalidade descomunal que eu tive de gritar e fiquei a chorar quando a equipa saiu, disseram apenas que colocaram um gel para iniciar a primeira indução e para eu aguardar que seria observada mais tarde.

Lembro-me de querer sair dali e que não iria aguentar mais toques daqueles. Só pensava que seria um processo normal de indução, que tinha que aguentar e ser forte pelo meu bebé, mas algo me dizia que não podia ser feito com tanta violência e com tanta falta de empatia, mas também pensei talvez o problema fosse meu, em não conseguir tolerar tanto a dor.
Voltaram a observar mais tarde, mais uma vez os toques horríveis de uma médica e de uma enfermeira que me deixaram a chorar e cheia de sangue e que disseram que se continuasse assim a gritar que não ia conseguir ter o meu bebé. Era uma arrogância, uma maldade no olhar, senti que só queriam magoar por magoar, forçar algo sem necessidade, eram dores horríveis e o que disseram magoou ainda mais. Informaram-me que no dia seguinte de manhã iria fazer a segunda indução que a primeira não desenvolveu.

Eu estava de rastos, cheia de medo do que me iriam fazer mais, ninguém me explicava nada, tinha contrações mas nada de especial, a dor das contrações não era nada comparada com os toques que me faziam e as coisas que me diziam.
Não me deixavam levantar, andar e para ir a casa de banho dependia da equipa de enfermagem se se dava ao trabalho de me ir desligar o CTG e o soro, se não lhes apetecesse tinha que fazer numa arrastadeira, eu que estava em plenas capacidades de me movimentar e que já tinha ido várias vezes sozinha. Senti-me humilhada, desrespeitada, sozinha, triste e desesperada, só queria sair dali com o meu bebé, só queria que aquele pesadelo terminasse rápido, disse várias vezes por mensagem ao meu marido que não aguentava mais.

No dia 4 de agosto, o segundo dia de indução, a equipa médica mudou e as duas médicas fizeram-me o toque e eu não gritei, nem chorei, houve respeito, empatia e senti que me iriam ajudar, explicaram o protocolo da indução, que tinha que fazer 4 induções e só se não desenvolvesse é que passava para uma cesariana. Deram-me força e disseram que tudo iria correr pelo melhor. Fiquei mais tranquila e pensei, que diferença, como é possível isto acontecer e eu a pensar que era eu que não tolerava a dor dos toques daquela enfermeira e daquela médica do dia anterior, mas afinal era apenas maldade gratuita e gosto por fazer e ver alguém sofrer, mas isso tem um nome, e hoje depois de tudo sei que se chama violência obstétrica.
Mais tarde, nesse mesmo dia volto a fazer a terceira indução, pelas 18 horas, depois seria observada mais tarde. Estava desejosa que fosse desta vez ou que fizessem a cesariana sem seguir protocolos, muitas vezes desnecessários. Isto porque uma cesariana sai muito caro ao estado, como se nós, utentes, não tenhamos já descontado o suficiente, demasiado até, para o serviço público de saúde que temos.

Mais tarde pelas 21 horas fazem novamente o toque, sem magoar e o médico disse que já estava a começar a ter dilatação, muito pouca, mas que amanhã já teria o meu bebé nos braços se continuasse a progredir assim. Já tinha algumas contrações e fiquei com mais, cada vez mais, mais fortes e menos espaçadas. Pedi para me darem algo para aguentar as dores, deram-me não sei o quê na veia e disseram para respirar e ter calma. Eu tentei, tentei muito, mas a medicação nada fez e as contrações eram cada vez mais fortes que me contorcia toda na cama. Entretanto rebentam as águas, eram umas 2 horas da manhã. Pedi novamente ajuda, para me darem a epidural, para me ajudarem, mas a enfermeira só me dizia que tinha que ter calma e chamou outra enfermeira para a ajudar. Disse para eu chamar o meu marido e assim fiz, mandei-lhe uma mensagem para vir para a porta do bloco de partos, mal conseguia ver o que escrevia, parecia estar num estado de transe, as contrações eram agonizantes, eu só pedia para me ajudarem, senti-me perdida e sozinha. Foi quando a enfermeira me disse que não havia médicos nem anestesista, que estavam a fazer uma cesariana de urgência que tinha vindo de outro hospital onde não havia serviço de obstetrícia no momento e eu tinha que aguentar.

Eu fiquei em choque e não acreditei no que estava a acontecer, só pensava que me iam ajudar, que ia arranjar médicos para me ajudar e dar-me a epidural, mas não, a dilatação ia sendo feita, aquela box virou uma espécie de bloco de partos, percebi que as enfermeiras estavam a tratar de tudo para eu ter ali o meu bebé assim, a sangue frio, sem epidural, sem médicos, sem nada. Só gritava de dores e pedia ajuda não sei a quem, a alguma força de outro mundo que me desse coragem para aguentar e não morrer, pensei muitas vezes que iria morrer ali, mas elas só me diziam que não podia fazer nada e lembro-me de uma das enfermeiras dizer que eu estava descontrolada e para não gritar.

Como é possível num hospital onde é suposto existirem cuidados médicos, nos serem negados desta forma porque não há profissionais? É muito triste e revoltante.

Quando estava quase, o meu marido entrou e ficou ao meu lado, estive quase sempre de olhos fechados, não sei se não queria ver a realidade ou se era para me concentrar melhor, porque percebi que era só eu e o meu bebé que podíamos fazer com que tudo corresse bem, era só eu e ele, mais ninguém.

Na madrugada do dia 5 de agosto pelas 6 horas e 30 minutos nasce o meu filho, com 4,190kg e 49cm, chorou logo nem foi preciso nenhum estímulo, ele já devia estar farto que decidiu nascer sem esperar pelas condições ideais, que deviam ser a qualquer hora, mas infelizmente até na hora que nascemos temos de ter sorte para ter cuidados médicos ao nosso dispor, até parece mentira dizer isto nos dias de hoje, mas é verdade! Depois de ele nascer colocaram ele em cima de mim, eu só pensei como é que conseguimos, nem estava em mim, mas a minha gratidão era imensa, por tudo ter corrido bem, por nós os dois termos conseguido!

Eu estava ali, sem perceber se estava em mim, sem anestesia a ser cozida pela enfermeira, ainda na box que parecia um matadouro porque eu tinha várias hemorragias e continuava ali a contorcer-me com dores, o chão era só sangue. Entretanto chegaram os médicos que disseram que tinha que ir para o  bloco para ser cozida e o anestesista disse que iria fazer uma raquidiana para não ser tão desconfortável, ou seja, o meu percurso foi o inverso, depois do meu bebé nascer é que vou ao bloco, porque finalmente estava livre.

Pediram para eu me levantar e passar de uma maca para a outra, obviamente senti-me mal. Depois o anestesista tinha mudado de ideias e afinal era melhor fazer anestesia geral para me cozerem. E eu fui buscar forças não sei onde e disse que não, ou fazem o que tinham dito ou não fazem, anestesia geral depois de tudo o que passei não o vão fazer porque eu não autorizo. Depois o anestesista foi falar com o médico e lá fizeram o que tinha sido falado inicialmente. Estiveram a cozer-me cerca de 1 hora, dois médicos e lembro-me de pensar, abocado quando precisei não tinha ninguém e agora tenho tanta gente de volta de mim, sinceramente nem sem bem para quê. Depois de cosida voltei para a box que já estava limpa e para perto do meu bebé e do meu marido.

Ainda hoje tenho pesadelos com estes dias horríveis, que deviam ser uma lembrança de amor, de um momento especial para qualquer grávida que vai dar a luz o seu bebé, foi tudo o que não aconteceu.

Hoje só agradeço por tudo ter corrido bem, mas sinceramente não sei bem a quem agradecer, só se for ao nosso anjo da guarda e a nós dois, filho.

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