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Metamorfose ambulante

escrito por: Maria Salgado

24/06/2021

Antes de ser mãe — e quando digo isto é mesmo até parir — tinha a certeza que es filhes é que têm de se adaptar à vida des adultes, que esta deve permanecer imutável e orientada para o trabalho, que o trabalho é o centro da vida, que o trabalho é a fonte de satisfação e concretização e o resto é adereço, pode ser fixe mas é adereço, há hobbies se sobrar tempo depois do trabalho. Contava e esperava com um regresso ao trabalho pelos 6/7 meses (salvaguardando os 6 meses de amamentação exclusiva que entretanto aos 2 meses já tinham ido pelo cano abaixo à conta da formula que tive de juntar por causa do freio curto que não foi detectado na maternidade) e voltei aos 9 a contragosto. Criticava ferozmente es pais e mães que ousavam sair de um jantar porque es filhes estavam desconfortáveis ou com sono, que insolência, má-criação, pais reféns de um simples bebé. Achava que amamentação era só comida e que tinha horário e data de término. Es pais não podem ceder, se não es crianças e bebés manipulam porque são manhoses (e já agora se fosse mesmo verdade, manipular para nos ter por perto é assim tão mau?), não se pode ceder, assumir um engano, pedir desculpas, es pais têm de ser superiores aos filhes e só assim es podem proteger, com autoridade e hierarquia e aqui, implicitamente, está também o medo. Os bebés dormem na sua cama no seu quarto e ok, podemos tolerar que se partilhe o quarto uns mesitos, mas coisa pouca e só por causa do síndrome de morte súbita, têm de aprender a dormir no seu quarto e só assim serão independente, e, sobretudo, isto é para o bem da criança.

Tinha a certeza de tudo isto. Nem foram necessariamente coisas que me disseram, foram coisas que fui absorvendo por viver numa sociedade adultocêntrica e que valoriza em primeiro lugar a produtividade laboral.

Estava profundamente errada.

E isso lixou-me um bocado o esquema.

O Cordão é muitíssimo importante porque a maternidade não pode continuar envolta no mesmo secretismo que a maçonaria. A vida des bebés e des pais e mães seria substancialmente mais fácil se não se descobrisse tudo à força e em pleno pós-parto, ficamos sem chão assim quando precisamos é de colo.

É importante não esquecer que somos mamíferos e que há certas coisas que são inerentes à espécie, apesar da recente (para o ser humano) industrialização e do capitalismo e do apagar sistemático do instinto. Es bebés, dá-se o caso de não saberem que estão a nascer em 2021 e que es adultos vivem em prédios e trabalham 8h por dia 5 dias por semana (na melhor das hipóteses) e que há vários costumes que se foram instituindo (abolição do quarto familiar, alguma obsessão com as aparências, comida como recompensa, toda a acção deve gerar produtividade mensurável, o ócio não é para aqui chamado, and so on and so on — a ler com voz de Žižek). Mas há coisas que sabem e muito bem, sabe é que é um ser humano e que precisa do cuidado constante des seus cuidadores, às vezes porque tem fome, outras porque tem sono, outras porque tem sede, outras porque tem xixi e (muitas) outras só porque sim porque não faz bem ideia do que é que anda aqui a fazer.

O problema é que para es cuidadores estarem física e mentalmente disponíveis para e seu bebé eles precisam de apoio na retaguarda — a tal da rede de apoio! — porque é fundamental cuidar de quem cuida e o que queremos não é andar à tona, queremos tudo bolas!, queremos estar mesmo bem e a curtir e estar disponíveis.

É preciso um apoio estruturado às recém famílias e — digo-o com todo o carinho — apoio não é um babygrow fofo. Ou melhor, até podes ser, mas não só não o será sempre como não será para todes. E se houver vergonha em perguntar ou vergonha em dizer eu quase que aposto que uma sopa ou uns pastéis serão com certeza mais apreciados que um babygrow. Eu sei bem quais os melhores presentes que recebi na gravidez e pós parto, primeiramente o número da melhor IBCLC do planeta graças a quem ainda amamento com todo o prazer, em segundo lugar travessas de arroz de pato e bacalhau, bolo do frutalmeidas, pastéis, sopas variadas e maravilhosas, ajuda em casa, tirar a louça da máquina ou fazer máquinas de roupa e também festinhas, o bom do cafuné.

Agora aquilo que tenho pensado é que isto extremamente difícil de integrar por vários motivos e acaba por se tornar um novelo muito difícil de desemaranhar: toda a gente trabalha de mais e se cuida pouco e nos poucos momentos “livres” não tem para dar (can’t pour from of an empty cup) e por outro lado sinto que há uma cegueira que só deixa ver es bebés como nenucos fofos e — perdoem-me — inúteis incapazes, e por muito inocente e amoroso que isso seja eu não posso deixar de sentir que lhes retira a humanidade e consequentemente a imprevisibilidade, a complexidade e a multitude de necessidades e portanto uma pessoa fica sem saber o que fazer quando um bebé chora porque precisa somente de colo e afecto, porque de alguma forma rebuscada na sociedade contemporânea o colo acabou sendo excluído das necessidades de um bebé, se choram ou é sono, ou fome, ou fralda, ficou de fora o afecto.

E é por isso que tenho a maior felicidade em ter mudado tanto e em ser a pessoa que mais contrario na minha forma de maternar. Agora é assim, amanhã não sei, seguimos saltando de fase em fase, nada é eterno e imutável, a não ser o colo, colo sempre para sempre.

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