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Não existo

escrito por: Anónimo

22/03/2022

Não existo. Não tenho tempo para nada. Sábado de manhã, natação com a minha filha. Depilação à pressa, desenhos animados como ruído de fundo. Dar mama na sesta. Acordar e ir a casa dos sogros. No banco de trás, porque a viagem ainda é longa e tenho de distrair a pequena curiosa. Jantar, com pessoas para quem sou transparente. Duas delas não me deram os parabéns pelo meu aniversário. Ter de lhes sorrir pela felicidade do meu companheiro e da minha filha. Domingo de manhã. Tento desabafar. Sou acusada de estragar o domingo. Saem os dois durante meia hora para as compras, depois de ter gastado meia hora para o convencer. Com medo do mau humor, tenho a iniciativa de lhe propor que vá ver o jogo ao estádio. A nossa filha dá sinais de doença. Vamos ao hospital. Novamente contrariado, pressinto. Quase desconfio que tal relutância se deva à quebra que esta ida à urgência provoca no orçamento mensal. Afinal não era infeção urinária. Mas alguma coisa é, pois ficou com febre e diarreia. Depois de uma semana sem dormir uma noite seguida, lá vamos nós para uma noite de xarope Ben-U-Ron e medições de temperatura. Inscrevi-me no Yoga há três semanas. Há uma semana e meia que não vou às aulas. No dia 8 de março fiz teste com três turmas, são 67 provas (por que raio fiz tantas questões?). São 335 questões de desenvolvimento. Ainda não li nenhuma. Não lavo o cabelo desde quinta-feira passada. Pondero até cortá-lo pelo queixo para não demorar tanto tempo a penteá-lo e a secá-lo. Quase a abdicar da minha imagem de marca, cabelo liso e comprido. Hoje não tomei banho também. Já era tarde depois de eles os dois terem tomado. Era hora de jantar. Ela recusaria jantar, enquanto eu não estivesse pronta. Estaria pendurada nas minhas pernas enquanto secava o cabelo. Deixaria a porta da casa de banho aberta e eu ficaria com frio. Iria querer pôr-me creme nas pernas. Tudo enquanto o meu companheiro fica na cozinha a fazer o jantar e o scroll. Sei disso por causa das ervilhas cruas. Já várias vezes a fui encontrar a olhar para o pai, cujos olhos não a viam, porque estavam a prestar atenção a mais um vídeo ordinário no grupo de Whatsapp, ao resultado de uma aposta da primeira liga ou a um e-mail com uma nova proposta de seguro automóvel. Descafeinado. O minuto em que tenho o privilégio de existir. Não lavo os dentes, não ponho o aparelho de contenção. Muitas vezes não tiro as lentes de contacto. Já nem tenho um par de lentes extra, ai se perco estas. Sou muito míope e nunca mandei fazer os óculos. Adormeço-a. Depois de quatro histórias. Uma delas versão enciclopédica sobre chimpanzés nas florestas do Congo. Felizmente já não pede maminha antes de dormir. Não gosto de a amamentar à noite. O cansaço impede-me do esforço do altruísmo. Está tão entupida que não dormirei com o ronco dela. Tento conversar com o meu companheiro, quando escuto o portátil fechar-se. Ele falou com o pai ao telefone, tentou conversar comigo sobre o seu dia no trabalho. Mas eu já sabia que quando fosse a minha vez ele me diria “temos de dormir, sem dormir não estamos bem”. E pensar que ele quer sexo, mas não quer conversa. Só se for sobre os outros. Aí não há cansaço. E pensar que tenho uma agenda com uma hora na igreja para escutar o silêncio, a ida à florista, as caminhadas nas duas manhãs em que deixo a minha filha na escola, o trabalho em casa, e-mails sobre a matrícula do próximo ano letivo, a remodelação da cozinha no verão, a leitura e a escrita. Foi sugestão da psicóloga. Tenho agora três cadernos. A agenda, o meu diário, e o diário que escrevo para a minha filha. Estão todos parados talvez no início de março. Ainda era inverno. Livros? Leio até o sono vir. Por isso, não leio Literatura, porque ninguém adormece com Literatura. Depois do monge budista, leio agora um terapeuta infantil que convinda os pais a conhecerem as emoções dos filhos. Tem-me salvado a pequena horta na varanda que os meus pais me ofereceram no aniversário. O segundo manjericão resistiu. Caíram duas pétalas no morangueiro, já é possível ver o pequeno morango verde. A minha filha ditou-me uma carta para os meus pais. Do alto dos seus três anos. Só frases de amor. Ao menos, o amor dá frutos. Amar vale a pena. Nem que seja para a ver amar os outros. Saí de casa desde o jantar nos sogros para pôr a carta no marco do correio. De mão dada com ela. De cabelo apanhado e leggings. Quase todas as noites adormeço com ela, muitas vezes antes dela. Acordo depois de madrugada e volto para a minha cama. Às vezes depois de scroll vazio na casa de banho. Hoje escrevi. Aqui, no bloco de notas digital. Esta semana não rezei o terço, ou seja, não estive com a minha avó. Sinto falta dela. Hoje estou no sofá. Não adormeci. Estou entregue à insónia, mas escrevi. Ontem sonhei que a minha filha tinha cancro e eu estava com ela no hospital a fazer macacadas para ela se rir. Também sonhei que uma funcionária da escola invadia uma sala de reuniões para me esbofetear sem que eu soubesse porquê. Amanhã tenho de ir justificar a falta. Vou pôr um dia férias, porque tenho vergonha de pedir uma declaração à médica por Whatsapp. Não quero incomodar.

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