Skip to content

Os pais da minha vida

escrito por: Ana Jorge

22/02/2022

Venho de uma família de mulheres. Além de sermos muitas, parecemos ainda mais por sermos uma frente tão unida e coesa. Falamos muito e muito alto, e com as mãos. Raramente temos papas na língua e às vezes perdemos a paciência umas para as outras durante umas horas ou uns dias, até uma de nós se sentir cansada, triste, doente ou injustiçada e aí vamos todas, espada em riste, combater o mundo. Ao longo da vida, aconteceu a nossa batalha ser com o sexo oposto, muitas vezes. Somos um clã repleto de histórias de casamentos falhados, pais ausentes, patrões machistas e desilusões em geral. Habituámo-nos a que assim fosse e, de geração em geração, fomos adoptando esta postura de líderes das nossas vidas, gestoras das nossas casas, malabaristas de todos os pratos possíveis em movimento, sempre assumindo que ninguém nos ia ajudar a juntar os cacos dos pratos partidos no processo. Quando engravidei pela primeira vez, na minha cabeça só fazia sentido que fosse uma menina. E foi. Quando engravidei de novo, tinha a certeza absoluta que seria outra. Ia chamar-se Simone, como Beauvoir.

Mas tive um filho. Quando vi a ecografia, demorei uns segundos a processar — realmente nunca me imaginei mãe de um menino. Tê-lo levou-me a fazer uma viagem emocional longa e profunda aos homens da minha vida: pensei no pai incrível que os meus filhos têm a sorte de ter, no meu próprio pai e no quanto a minha relação com ambos me moldou enquanto mulher, nas minhas diversas facetas.

Ao puxar a cassete atrás, porém, não foi em nenhum deles que encontrei as respostas que procurava. Foi nos meus avós.

Lembrei-me de como o meu avô paterno, homem austero e conservador, para quem a mulher tem um papel muito específico na vida familiar e na manutenção da casa, se levantava antes de toda a gente para ir trabalhar e me deixava, na mesa da cozinha, sempre no mesmo pratinho verde, um kiwi cortado em forma de flor, em forma de amor, para o pequeno almoço. O trabalho foi sempre prioridade, mas trocava-o por passar duas horas à mesa comigo — Dá gosto ver esta miúda comer! — ou, e especialmente, para ir ao futebol. Por cada golo do FCP, eu levava um beijinho repenicado na bochecha.

Lembrei-me do meu avô materno, que já partiu e do qual não me despedi, que me deixava todas as manhãs na escola primária com um abraço apertadinho antes de me ver entrar pelo portão. Segundo a minha avó, nunca mudou uma fralda — o que não me surpreende — mas as memórias que guardo são da sua paciência infinita para me ensinar a andar de bicicleta e do seu arroz amanteigado embrulhado em folha de jornal para não arrefecer, mesmo quando ficava chateado pelos meus atrasos constantes para almoçar.

Dois homens tradicionais, exatamente como seria esperado do seu tempo. Um de direita, o outro de esquerda, ambos exigiam silêncio à refeição para ouvir o telejornal. E acabavam ambos a rir com os disparates dos netos à mesa. Homens apaixonados pelas suas mulheres, fiéis, e atentos. Pilares de estabilidade e segurança. Pais imperfeitos, com relações atribuladas com os seus filhos. Avós, para mim, absolutamente perfeitos. Deram-me tanto amor e tanto do seu tempo, que vivesse eu mil anos e nunca lhes conseguiria retribuir.

Nunca foram homens modernos, contemporâneos, com quem se possam discutir questões como o feminismo, a homossexualidade e a identidade de género. Talvez nunca tenham questionado sequer a diferença entre as oportunidades oferecidas aos seus filhos e filhas e esse não seja o mundo em que quero ver os meus filhos crescer.

Mas o amor, a honestidade e a solidariedade atravessam gerações e acompanham-nos para lá da vida. Entre muitas outras coisas que espero que aprendam, quero muito que o meu filho — e a irmã! — saibam que descendem de dois homens maravilhosos, que viveram e foram do seu tempo, com tudo o que isso traz, mas que amaram esta neta, ora menina, agora mulher e mãe, sem medida e sem pedir nada em troca. Que amaram as suas mulheres, as suas filhas e filhos, netos e netas da melhor maneira que souberam, com a sua absoluta verdade.

Que foram homens fundamentalmente bons. E é disso que o mundo e todos nós precisamos.

outras entradas no diário

Amor em letras (i)números

Margarida Carrilho
04/04/2022
Mas nos dias em que penso muito o que mais penso é no peso desta dança descompassada Mas que é bela, tão bonita É mar profundo e escuro

Um dia normal

Marta Cruz Lemos
03/04/2022
Barriga cheia, senta entre nós, brinca com a caixinha de tralhas que já tenho a postos na mesa de cabeceira, canta, pede abraços, dá beijinhos. Aguenta uns 20 minutos até termos de nos levantar à pressa, que o senhor quer explorar e não quer ir sozinho.

um dia bom

Maria Veloso
01/04/2022
Acaba março, não sinto aquela excitação do costume, nem com a mudança da hora. Não houve inverno, houve pandemia. Não há dias normais.
×

Subscrever newsletter