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Um dia de cada vez

escrito por: Anónimo

14/01/2022

Ser mãe é um acto de altruísmo profundo.
A partir do momento em que sabemos que vamos ser mães, nunca mais estamos sozinhas.

Lembro-me de fazer viagens inteiras de comboio a sorrir porque à vista desarmada era só eu, mas cá dentro estava acompanhada por um feijãozinho que eu já amava mais do que a própria vida, que foi planeado e desejado, porque eu sou um cliché ambulante que queria ser mãe deste que me lembro.

Tinha idealizado que ia ser do tipo de mãe que “deixa ir”. Não passar para o meu pequeno feijão todas as coisas negativas que deixaram passar para mim: assisti a um divórcio bastante feio entre os meus pais antes de entrar para a escola (sem nunca dizer uma palavra sobre isto porque na altura simplesmente não se falava sobre as coisas), desenvolvi uma ansiedade quase crónica e um sentimento de estar sempre incompleta: quando estava com o meu pai tinha saudades da minha mãe, quando estava com a minha mãe tinha saudades do meu pai. Este foi o primeiro sinal da minha ansiedade de separação. Nunca deixei que me dominasse mas sempre tive muita dificuldade com despedidas. Não queria que nada disso passasse para o meu feijãozinho, ia ser a mãe fixe que permite tudo com limites, mas deixa viver.

Até que ao terceiro mês de gravidez começam a falar numa gripe asiática que anda por aí. E ao quarto mês ficamos fechados em casa. Todos os planos para baby shower, decoração do quarto, almoços com amigos para dar a boa nova, nada disso aconteceu. Fechei-me muito sobre mim própria para sobreviver à minha ansiedade galopante, porque a última coisa que precisava era perder este bebé que representava uma luz no fundo do túnel de todo o mal que estava a acontecer. Aqui tive a primeira amostra de que às vezes as pessoas com quem achamos poder contar são as primeiras a desiludir-nos: algumas amizades ficaram bastante danificadas porque mesmo quando o primeiro confinamento acabou eu tinha medo de estar com outras pessoas. Tinha mesmo muito medo. Habituei-me ao conforto de estar com o meu marido em casa, no nosso porto seguro. Fui a casa de pessoas de extrema confiança apenas. Fui criticada por me estar a isolar e nunca me perguntaram se estava bem, o que sentia, como podiam ajudar.

Eis que chega a hora do parto, conseguimos chegar ao teste obrigatório 48h antes com um resultado negativo (um cenário que me causava bastante ansiedade era um de nós estar positivo e estar sozinha no momento do parto). E eis que o covid se tornou numa ervilha na salada russa que a minha ansiedade representa.

Quase perdi a vida no parto, fomos separadas sem me informarem de nada do que estava a acontecer, fui mal tratada e humilhada num hospital que considerava uma referência, o pós-parto teve todas as complicações que poderiam ter acontecido (felizmente só comigo e não com o meu feijãozinho que era agora uma linda bebé).

Entre um novo confinamento e uma família longe de ser compreensiva, que em vez de ajudar só davam mais trabalho e despesas, porque ver a bebé rapidamente se transformava em “então o que se almoça/janta?” e o meu Uber eats rebentou de encomendas nesse mês, assim como o orçamento de quem tinha acabado de ser mãe.

A minha saúde mental ficou bastante prejudicada, senti-me traída por aqueles de quem mais precisava e acabei por me fechar também deles. Os meses foram passando e a hora de escolher uma creche aproximava-se. Ao quarto mês da licença resolvi que ia utilizar a licença prolongada. Até aos 9 meses dela fomos só nós e um amor que só aumentava a ver todos os primeiros passos, palavras, gestos, tudo. Fui mãe a tempo inteiro durante 9 meses e não trocava esse tempo por nada.

No regresso ao trabalho foi-me dito que poderia ficar em casa e permanecer em teletrabalho até me sentir confortável, e acabei por nem inscrevê-la em creche nenhuma. Sempre fomos nós as duas e a adaptação ao teletrabalho com uma bebé correu muito bem. Entre livros, histórias, peluches, legos e algum YouTube na televisão (julguem-me!) os dias passam a voar e tenho a oportunidade de ver o amor da minha vida a evoluir de uma bebé pequenina para uma criança fantástica, feliz e divertida. Continuamos a ser só nós as duas (e o pai quando regressa do trabalho) e posso dizer que agora sim está a ser a fase mais feliz da minha vida. Claro que sou criticada por toda a família porque, passo a citar, “faz-lhe falta conviver com outras crianças”, “por isso é que ela ainda não anda/fala”, “sabes que um dia vais ter que te separar dela certo?”. Palavras que me doem como se me espetassem punhais. Das pessoas que deviam ser a minha rede de apoio. Depois de tudo o que eu passei.

E agora sim, a trabalhar a minha saúde mental e a reerguer-me das cinzas depois de me ter afastado de tudo o que me faz mal, sejam ou não família, haja ou não laços de sangue, começo dia após dia a voltar a ser o meu eu de antigamente. Um dia de cada vez.

Já fui jantar com amigas (sem filhos), já consigo ir ao supermercado sem ter que a levar comigo, já comecei a procurar colégios, sem pressa, porque até estarmos preparadas continuamos a ser só nós as duas, e é uma da outra que precisamos mais neste momento.

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