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Ode ao corpo

escrito por: Joana von Bonhorst

14/05/2021

Às vezes digo que sei o exacto momento em que me tornei mãe.

Era Verão e estava na praia Verde, deitada na areia de barriga para baixo (o que sublinha que estava tudo no início e que a extensão da barriga ainda era tímida). De mão no queixo virada para a minha cunhada acabada de dar um mergulho, estava a observar aquele início de tarde. Apesar de sermos quatro não havia som vindo de perto, só aquela mistura de fundo típica de praia, com barulheira de crianças, ondas a bater e conversas alheias ao longe. Estava tudo lindo. Eles dormiam, sossegados, ao sol. Tinham lido o jornal, tínhamos comido umas bolas de berlim e não sabíamos sequer se íamos almoçar. À beira-mar, naquela pasmaceira algarvia, havia miúdos a correr alegremente na rebentação daquele mar mole sob o olhar atento de uma mulher. Pessoas bronzeadas a caminhar com convicção. “Boooooola de Berlim”. Cheirava a verão, a óleo de côco, tinha os pêlos dos braços sublinhados com sal e as pontas dos dedos com uma mistura de areia e açucar. Estava tudo calmo, dourado e super instagramável.

De repente, senti que tinha levado um estalo ou que se tinha desbloqueado um nível no meu cérebro: nunca mais iria ser assim. Nunca mais ia estar sossegada, deitada a apanhar sol, sem second thoughts. Sem horários, sem regras, sem planos. Sem preocupações, sem tralhas por todo o lado, sem saber que parte de mim estaria para sempre fora de mim.

Onde é que começa tudo? Foi ali? Como, se não me senti mãe durante a maior parte do primeiro ano de vida do meu filho? Houve qualquer coisa que mudou naquele dia, mas tornei-me mãe? Como é que isso acontece? Onde? Há um mecanismo? Uma reacção química? No cérebro? É no coração?

Restringindo-me à generalização biológica e reconhecendo a limitação da minha perspectiva como a de alguém que apenas conhece a maternidade através do resultado de uma relação heterossexual que resultou numa gravidez e embora respeite e admire todo o espectro de possibilidades..

Se a minha maternidade tiver de começar num sítio, eu diria que foi no corpo. Independentemente da facilidade com que aconteceu, foi ali. No corpo. Na potência e na pujança de dividir um corpo em dois (ou em três, quatro). Num corpo que luta contra um “intruso” ao mesmo tempo que se prepara para o receber. Há alguma coisa mais incrível e violenta que isto? Deixar-se ser ocupada, dar corpo?

Nas minhas infinitas pesquisas, descobri que não há altura nenhuma se não numa gravidez em que um ser humano crie dentro de si, um órgão extra. Mais: um órgão extra com ADN que não é só seu mas de outra pessoa. (Também descobri que há inúmeros estudos sobre o processo de criação da placenta — o tal orgão — e o fenómeno cientifico por de trás do facto de não ser rejeitado pelo corpo inicial e de que forma poderá ser replicado e aplicado em transplantes).

Enjoos, vómitos, inchaço, azias à parte… Há alguma coisa mais empoderadora que observar o corpo criar e esticar? No dia-a-dia estamos completamente desligados do que o corpo faz por nós mas durante um gravidez é impossível que passe despercebido. Nem que seja porque instalamos apps que nos traduzem em frutos e legumes (wtf) o tamanho do ser que carregamos e nos notificam dos seus feitos físicos. Ou porque nos vemos a esticar. Ou porque, às tantas, sentimos um movimento que não é nosso, dentro de nós e percebemos que temos mesmo vida a existir dentro de nós. Ou porque nos apercebemos da rapidez com que um chocolate chega ao nosso co-habitante numa espécie de estrica do açucar.

Odiei estar grávida mas nunca me senti tão “grande”, tão capaz e tão forte como quando estive grávida (sei que posso ser a única). Lembro-me de admirar o corpo ao espelho e de tirar fotografias para não me esquecer daquele poder todo que sentia. 41 semanas a ser casa, alimento, transmissão, protecção. Eu que nunca tive grande auto-estima transformada em maravilha da Natureza. Sentia-me capaz de tudo, completamente ligada à gerações e gerações que antes de mim fizeram o mesmo, até chegarmos aqui. Se houve altura em que me senti ligada a cenas místicas, foi ali. Sentia-me uma espécie de mágica, super-humana.

Acho curioso como se fala pouco do funcionamento e da biologia da gravidez, da função engenhosa das hormonas, da razão dos enjoos e do sono, da mecânica do corpo quando se aproxima do parto.

Já com o meu filho nos braços li Like a Mother: A Feminist Journey Through the Science and Culture of Pregnancy da Angela Garbes (que não me canso de recomendar a todas as amigas) e fiquei literalmente ofendida por ninguém me ter dito nada daquilo. Fui a cursos de preparação para o Parto mas em nenhum ouvi aquela informação preciosa que veio a confirmar tudo o que senti.

This Is Your Brain on Motherhood — The New York Times (nytimes.com)

Como é que de repente perdemos este respeito pelo corpo, pela magia, pela força e capacidade da mulher — que inegavelmente nos garantiu a Humanidade e permitiu que ainda cá estivéssemos neste sítio incrível — e aceitámos o medo e passámos a acreditar que somos incapazes e que a gravidez é uma espécie de perigo, de doença e de evento com necessidade absoluta de medicalização? Porque é que é tudo sobre o bebé e nunca sobre a maravilha que a mulher é capaz de fazer? Será que a informação científica (sublinho científica) não deveria ser facilmente facultada e ensinada desde cedo? Não teríamos mulheres muito mais empoderadas e seguras? Mais felizes?

É impossível e desumano negar que a evolução da medicina salvou milhões de vidas (de mulheres e de bebés) mas acreditar que só assim é possível é uma injustiça bárbara para com as mulheres. Não será esta cultura de ódio pelos corpos, de hiper-perfeccionismo, de criação de ideais impossíveis uma forma de nos aprisionar no medo e perpetuar a ideia de que somos incapazes?

Olhem bem para os vossos filhos. Os vossos corpos fizeram-nos. Não é incrível? Celebremos!

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