“Vou saber quando forem as contrações de parto?”, perguntei à minha doula. Ela sorriu e respondeu-me com a sabedoria habitual, “Acredita, minha querida, vais saber.” A proximidade do segundo parto acordou os fantasmas do primeiro.
Um parto induzido às 38 semanas numa espécie de TGV de contrações, que por serem “sintéticas” me pareceram tão aceleradas como controláveis – ou talvez tenha sido eu a iludir-me e a rejeitar a epidural para sentir tudo, “pelo menos isto não me tiram”.
No primeiro parto fui passageira de uma viagem que sonhei, desejei ardentemente, e temi que nunca me chegasse. No bilhete o carimbo “sofrimento fetal”. Não percebi. “O coração desacelera com as contrações, vamos ter de induzir”, dizia a médica, e eu, a perceber sem perceber, gritava mentalmente “Espera, espera, espeeeeeeeraaaaaaa! não foi nada disto que planeámos. Quais contrações? Eu mal as sinto!”.
No dia seguinte induzimos. Com a indução veio a cesariana. O pano que me deixou detrás do palco sem ver o espetáculo mais extraordinário da vida. Não houve pele a pele, os braços presos e as pernas adormecidas a domarem-me a alma. Senti a pele de pêssego, o cheiro a útero, num micro segundo em que a encostaram à minha cara – mas filha, esse micro segundo foi tão eterno que te seguiria pelo cheiro até ao fim da terra, se preciso fosse. Não foi.
Nasci naquele dia e quando chegámos a casa chorava de alegria pela minha filha e de dor por mim, pelo corpo cortado, pela memória de espectadora da sua entrada na vida. “Queria mais de ti, de mim, para ti, para nós”.
Aos 6 meses fiz as pazes com o parto, comigo, com a minha fraca performance de fêmea parideira. Aos 6 meses respondi à pergunta que me levaria a engravidar do meu segundo filho: sim, queria outro bebé, mas não para curar a ferida na carne nem na alma, não como segunda oportunidade. Queria outro filho porque havia, em mim e em nós, espaço para ele. Essa certeza fez-se acompanhar por outra, a de que neste parto ninguém me arrancaria do palco, o espetáculo era meu, atriz principal, solo, monólogo, tudo o resto ruído e culminaria com o meu filho nos braços.
Reuni-me da melhor equipa. Escolhi a doula, mudei de obstetra, mudei de hospital, informei-me dos meus direitos, falei com mulheres com viagens semelhantes e a cada dia, semana, trimestre, reforcei a certeza de que, cesariana ou vaginal, este parto era meu, por direito, por respeito, por amor a mim, aos meus filhos, ao meu corpo, às mulheres que me habitam.
“Tira o teu filho de dentro de ti” ouvi estas palavras no meio do transe que me trouxe da escuridão acolhedora do parto, da caverna onde me escondi e encontrei para parir. puxei aquele corpo ensanguentado, quente, meu, que quis lamber e esfregar na minha pele para que nunca mais nos esquecêssemos um do outro. Um cordão que ainda o prendia às minhas entranhas, o meu corpo a saber o que fazer sem ser ensinado. Eu a sentir-me capaz de fazer tudo outra vez, tantas vezes quantas fossem precisas. a sentir-me inundada de luz, de poder. Os meus gritos silenciaram-se. As ondas das contrações eram uma memória vitoriosa distante o corpo cansando da dança, o momento a ser eternizado na pele e na alma.
Às 42 semanas de gestação, depois de 5 dias em fase latente de parto, o meu filho trouxe-me a VBAC sonhada.